Steve Harrison é um dos poucos personagens detetives que Robert E. Howard criou para tentar entrar no rentável gênero pulp de estórias policiais no inicio da década dos anos de 1930.
Por Marcelo Souza
Bem, vamos lá. Iremos introduzir um novo personagem howardiano com a seguinte sequência compilada do conto The Mystery of Tannernoe Lodge:
“Algo próximo ao pânico tomou conta dele. Puxando sua pistola calibre 45 debaixo do travesseiro, ele apertou o gatilho, mas só conseguiu ouvir um leve clique. Com uma imprecação, pulou da cama, com os músculos tensos para lutar até a morte... e ao fazê-lo, ouviu um impacto suave, como uma faca em um bife. Um grunhido e um suspiro sibilante acompanharam o impacto. A misteriosa figura desabou de cabeça, como um boneco, e ficou com os braços estendidos. Um raio de luar caiu em suas mãos, que se contraíram convulsivamente. Além, Harrison pensou ter visto uma sombra se movimentando na escuridão e na parede, mas não tinha certeza”.
A presente sequência foi publicada somente em 1981 na coletânea The Lord of Death (por Donald M. Grant, 1981). É interessante analisarmos a trajetória desse novo personagem de Robert Howard, porque, a primeira vista, ele foge daquele estilo clássico de bárbaro tão famoso que o projetou como uma unanimidade no estilo Espada & Feitiçaria.
O personagem em questão é o detetive Steve Harrison. Mas por que Robert E. Howard se aventuraria a entrar no mercado pulp de histórias de detetives? Bem, foram vários fatores que o levaram a isso, entre eles o financeiro, haja vista que, a partir dos inícios da década de 1930 em diante, essas histórias de detetives eram bem populares e tinham um público enorme e cativo que lia esse material.
E, ao longo dos anos de 30, esse gênero de histórias policiais foi se proliferando em uma quantidade imensa de pulps que se dedicavam a publicar histórias e mais histórias de detetives, mistérios e aventuras policiais. E é nesse contexto que Robert E. Howard sente a necessidade de ampliar seu mercado literário devido a alguns fatores, como os seguidos atrasos nos pagamentos que ele deveria receber pelos seus contos publicados na Weird Tales. Com vemos, a necessidade financeira estava batendo as portas, pois como sabemos, durante esse período, nos Estados Unidos, tivemos a histórica crise econômica mundial com a Quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929.
E, como sabemos também, Robert E. Howard não se limitou a escrever apenas contos e histórias de Espada & Feitiçaria. E também não escrevia somente para a Weird Tales, mas enviava seus contos, através de seu agente literário Otis Albert Kline, para serem vendidos para outras editoras de pulps. Muitos desses contos eram rejeitados, e o texano os arquivava em seu baú, ou até mesmo os revisava e mudava os seus títulos, e os personagens para tentar novamente vendê-los. Afinal, Howard era um escritor profissional, e escrever era a sua profissão numa época em que os pulps eram a mais populares das distrações do cidadão comum estadunidense. E a mais barata e acessível para tantas pessoas, diga-se de passagem.
Pois bem, as histórias de detetives eram um mercado promissor. E por que Howard não tentaria entrar nesse meio? Ele entrou, mas não estava muito satisfeito com ele, pois esse mercado tinha um certo padrão a ser seguido na hora de se escrever uma trama policial. E era algo que Howard não conseguiria se encaixar muito bem. “Não obstante, ainda que o autor estivesse satisfeito com alguns dos novos campos que explorava, como o da aventura, não estava igualmente satisfeito com suas estórias de detetives”. (BARCO, 2014, p.7). Fato esse que Howard viria mencionar numa carta o seu descontentamento ao escrever essas histórias de detetive:
“Já hei abandonado de forma quase definitiva o campo das histórias de detetives, no qual até agora não consegui publicar nada, e que representa um tipo de história que, na realidade, detesto. Resulta-me difícil, inclusive, ler os contos desse gênero, e também digo, escrevê-los”. (BARCO, 2014, p.7).
Entretanto, ele as escreveu e criou quatro personagens detetives para protagonizar as suas tramas: Steve Harrison, Butch Gorman, Brent Kirby e Butch Cronin. Além de criar personagens secundários para as suas histórias.
A primeira história de detetive que Howard conseguiu vender e ser publicada foi “Black Talons” (Garras Negras), na revista pulp Strange Detective Stories do mês de dezembro de 1933 e, por conscidência, ou não, não é o personagem Steve Harrison seu protagonista. E também essa história não segue aquele padrão clássico das tramas de detetives, muito mais se enquadrando no gênero “weird menace” do que uma trama policial clássica (algo do tipo de “ameaça estranha”, muito parecido com o “perigo amarelo” onde a trama se desenvolve sob um clima de uma sociedade secreta de assassinos, cultos estranhos, torturas e assassinatos praticados sempre por pessoas de um grupo étnico oriental e de outra parte da Ásia ou Oriente Médio).
Logo em seguida, após o êxito da publicação dessa primeira história (Garras Negras) na Strange Detective Stories em dezembro de 1933, Howard, que já tinha enviado para seu agente literário Otis A. Kline uma segunda história desde o mês de agosto de 1933 (“Lord of the Dead”) conseguiu a promessa de que a mesma seria publicada em março de 1934. A ironia da história é que, com o anúncio da publicação dessa estória sendo feito na edição do mês de fevereiro, alterando o título da mesma para o nome de “Dead Man’s Doom” (uma exigência do editor), ela não foi publicada simplesmente porque a revista encerrou o seu número na edição do mês de fevereiro. E o manuscrito original voltou para Robert Howard que guardou-a no seu baú, não sendo publicada em vida do autor. Vindo a ser publicada bem mais tarde, e bote mais tarde nisso: em 1978 foi que essa estória veio a público na coletânea de Skull-Face.
De agosto a dezembro de 1933, Howard havia escrito três estórias de detetives, o que tudo indica: Black Talons (Garras Negras), que ele conseguiu vender; Lord of Dead (O Senhor da Morte), que voltou por causa do encerramento da revista; e “Names in the Black Book” (Nomes no Livro Negro) que é a sequência imediata de Lord of Dead que o agente literário de Howard (recebeu das mãos do texano em janeiro de 1934) e conseguiu vendê-la para a Super Detective Stories somente em maio de 1934, sendo, enfim publicada naquele mês.
A “aventura” de Howard nesse campo de histórias de detetive duraria não mais que dois anos, quando, no ano de 1935, ele abandonaria por completo a incursão da escrita de suas histórias para esse gênero. Entretanto, esses dois anos em que o autor escreveu essas histórias foram bastante proveitosos, se assim podemos dizer, para o amadurecimento do texano como escritor, pois ele, além de ter escrito dez histórias e um fragmento com o seu personagem detetive Steve Harrison, escreveu outros contos (ao total nove) com outros detetives (Butch Gorman, Brent Kirby e Butch Cronin) ambientando-os em tramas com os mais exóticos lugares, personagens e vilões que iam desde seitas diabólicas, sociedades secretas de assassinos hindus, árabes e chineses; passando por canibais e descrições de torturas mais cruéis, perigos cada vez mais difíceis de uma pessoa escapar e os combates mais desesperados que só mesmo na obra de Robert E. Howard poderíamos ver. Mas, vamos falar agora sobre o seu detetive Steve Harrison, personagem central desse artigo, bem como dos vilões que cercam esse personagem. Vejamos essa narração de uma aventura desse detetive:
“Na delegacia, Hoolihan, o chefe de polícia, desejava também uma testemunha para o caso, tendo reconhecido alguns detalhes peculiares no mesmo, revistando a loja de antiguidades, estando ansioso por ouvir um relatório direto do próprio Harrison. Mas o detetive havia desaparecido da face da terra; a misteriosa River Street parecia tê-lo engolido, como havia feito em ocasiões anteriores. Críptico, reservado, obcecado em trabalhar completamente sozinho, Harrison tinha o hábito de desaparecer após os crimes sem dizer uma palavra a ninguém e depois reaparecer várias horas, dias ou semanas depois, acompanhado pelo culpado... vivo ou morto... e um relatório lacônico. Hoolihan, apesar de reconhecer seus méritos como caçador de homens naquele distrito diabólico, costumava insultá-lo em voz alta e fervorosamente”.
Robert E. Howard, in “The Black Moon”.
Como vocês leram acima, uma breve descrição do detetive Steve Harrison feita pelo seu criador, Robert E. Howard. “Críptico, reservado, obcecado em trabalhar completamente sozinho...”, quase um “vigilante noturno” que não descansa para combater o crime. Assim poderíamos definir o personagem Steve Harrison. Criado quando os anos 30 iniciava uma época de crises que abalariam o mundo, especialmente na economia, Steve Harrison encarnaria “a iconografia popular do personagem que cortava o mal pela raiz sem se preocupar com a legalidade” (BARCO, 2014, p.9).
Robert E. Howard havia idealizado seu personagem Steve Harrison como um típico “irlandês negro”, ou seja, “um sujeito corpulento, com ombros largos, cabelo negro e olhos azuis”, ambientando suas aventuras no exótico bairro chinês de São Francisco, mais precisamente no Distrito Oriental, enfrentando, ou melhor dizendo, solucionando casos em que, nesse primeiro momento da narrativa com o detetive Steve Harrison, estaria enfrentando vilões chineses e seus sectários.
É claro e notório aqui que Howard recebeu a influência de Sax Rohmer e seu principal vilão chinês – Fu Manchu. Veremos isso quando lermos o conto “O Salto de Prata” (The Silver Heel) e “O Senhor dos Mortos” (The Lord of the Dead), duas típicas histórias que podem ser enquadradas na temática yellow peril “perigo amarelo” (uma paranoia surgida no final do século XIX e inicio do XX que começou a ser propagada no imaginário ocidental afirmando que as potências ocidentais estariam ameaçadas por um plano secreto dos asiáticos para conquistar o mundo. Na literatura, esse termo ganhou notoriedade com a obra de Sax Rohmer e seu vilão asiático Fu Manchu).
Vejamos dois paragrafo para comparar tal afirmativa da influência de Rohmer em Howard na concepção dessas primeiras histórias do detetive Steve Harrison ao criar o seu vilão asiático:
“Erlik Khan”. Era como ver materializado um terrível pesadelo; como ver confirmada uma lenda malévola. Durante mais de um ano, haviam circulado rumores pelos negros becos e portais em escombros que falavam que o POVO AMARELO se movia de forma tão inescrutável como se fossem fantasmas. Não eram apenas rumores. Aquele era um termo demasiado concreto e definido para poder aplicar-se aos murmúrios dos fumadores de ópio, os balbucios dos loucos, os estertores dos homens agonizantes e os sussurros desavisados que se perdiam na brisa noturna. Mas, dentre esses murmúrios desconexos, se impunha um temido nome, repetido com pavor, em sussurros estremecidos: “Erlik Khan”. Era uma frase sempre associada a acontecimentos escuros, como um vento negro que ululava através das arvores à meia-noite; um lampejo, um suspiro, um mito que nenhum homem podia confirmar ou negar. Ninguém sabia se era o nome de um homem, de um culto, de um plano de ação, de uma maldição ou de um sonho. Um nome que sempre estava associado a tudo aquilo que significasse uma ameaça: um sussurro de águas negras que batia os podres pilares das docas abandonadas; o sangue gotejando sobre pedras escorregadias; estertores de agonia em cantos escuros; pés sigilosos deslizando-se à meia-noite para destinos incertos. (HOWARD, Robert E. The Lord of Dead)
"Mas Smith, isso é quase inacreditável!" Quem é o gênio do mal que controla aquele movimento secreto horrível? "Imagine uma pessoa felina alta, magra, com ombros largos, sobrancelhas shakespearianas e um rosto de demônio, um crânio raspado e longos olhos magnéticos verdes como os de um gato." Dê-lhe toda a astúcia cruel da RAÇA ORIENTAL mas concentrada em uma única inteligência gigantesca, com todos os recursos da ciência antiga e atual, com todos os recursos, também, de um governo poderoso que, no entanto, sempre negou até ter conhecimento de sua existência. Imagine aquele ser monstruoso e você terá o retrato mental do Dr. Fu-Manchu, o PERIGO AMARELO encarnado em uma única pessoa”. (ROHMER, Sax. The Mystery of Doctor Fu Manchu).
Além do vilão muito parecido com a personalidade de Fu Manchu, Robert Howard, ao escrever suas primeiras estórias de detetive nessa premissa do “perigo amarelo”, povoou o cenário das primeiras aventuras de Steve Harrison no bairro chinês com alguns personagens secundários importantes para o desenrolar da trama. Nesse sentido, vemos o chinês Wang Yun, dono de um antiquário, como amigo e informante de Harrison; Ti Woon, um chinês que lidera o tong mais importante de River Street, em dado momento da estória “O Senhor dos Mortos”, auxilia Harrison na perseguição a um assassino do bairro chinês.
Mas os contos de detetives, escritos por Howard, difere das histórias convencionais a esse gênero de tramas policiais no sentido mais clássico que os mestres desse gênero escreveriam (como os autores Artur Conan Doyle, Dashiell Hammett, (anterior e contemporâneo aos anos de 1930) , e posteriores aos anos de 1940 como John Dickson Carr, Mickey Spillane, Amelia Reynolds, entre outros escritores que, desde os anos 20, começaram a escrever histórias policiais nos pulps [entre eles a lendária Black Mask], passando pelos anos 30, e continuando pelos anos 40 e 50 como um dos gêneros consagrados entre os pulps magazines).
Podemos ver claramente essa diferença na abordagem das tramas policiais (ou de detetives) de Howard daqueles clássicos do gênero quando lemos a coletânea “O Segredo da Tumba e outros casos de Steve Harrison” (outra coletânea inédita de contos de detetives howardianos em língua portuguesa), nos quais Robert E. Howard ambienta suas histórias do detetive Steve Harrison em uma atmosfera de tumbas profanadas, cadáveres mutilados, vorazes ratos demoníacos, vozes fantasmagóricas que incitam ao assassinato, sacrifícios humanos e rituais de vodu.
Mas, em se tratando do Steve Harrison nessa primeira fase, veremos o nosso detetive envolto nas tramas de “perigo amarelo” (uma espécie de abordagem literária inaugurada pelo escritor Sax Rolmer ao criar o seu vilão asiático Fu Manchu como uma ameaça mundial ao reminescente império britânico e ao mundo ocidental em geral) no qual vemos o detetive de Robert E. Howard envolvido com as intrigas policiais de um bairro encravado dentro dos Estados Unidos em que seus moradores são asiáticos com suas gangues de assassinos lançadores de machadinhas e até mesmo um vilão ao estilo de Fu Manchu.
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