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Blood and Ice - Um filme perdido de Conan?

Bastidores, roteiro e as artes de pré-produção do incrível filme do bárbaro planejado em 1934… mas nunca lançado – será mesmo? – por Fábio Ochoa*


Foi em 1995 que uma pequena nota circulou pela comunidade nerd sem chamar muito a atenção.

Em um leilão de mobílias antigas do estúdio RKO (que em seus dias de glória passageira havia dado ao mundo filmes como Cidadão Kane), entre diversas outras peças, o historiador cinematográfico Charles Piltdown adquiriu uma escrivaninha que havia pertencendo a Willis O’Brien, o homem que gestou o King Kong original.


Willys O'Brien e o personagem que o tornou famoso: King Kong.

Com o tempo, a mobília ficou esquecida em sua casa, sendo um eventual objeto de curiosidade dos poucos visitantes de seu lar, como muitas das aquisições de Piltdown, aliás.


Em uma tarde, um dos seus convidados fez uma consideração estranha: ele constatou que as dimensões do móvel não pareciam corretas. Algo que nunca havia ocorrido ao comprador antes. Após o fim da visita, Piltdown averiguou com mais atenção: o amigo tinha razão, havia um compartimento falso dentro da escrivaninha.


O homem dedicado à história do cinema havia trombado com um pequeno mistério digno dos melhores filmes.


Dentro da gaveta oculta, haviam diversos manuscritos, projetos nunca realizados – provavelmente destinados a serem feitos fora do contrato de O’Brien com a RKO, talvez com pseudônimo ou ainda por terceiros, como um modo de burlar o desvantajoso acordo que o designer de produção tinha com o estúdio. Entre eles, um em especial chamava a atenção. Um filme dedicado a um subgênero que vinha fazendo sucesso entre leitores de classes mais populares através dos pulps: a espada e magia, estrelado por um gigante cimério.


O ano dos manuscritos, rascunhos avançados, concept arts, propostas de pôster e notas de produção era 1934 e o filme teria o título de Conan: Blood and Ice.


Sonhos da Era Hiboriana

Willis O’Brien estava vivendo o ápice da sua carreira. O seu projeto que tinha tudo para fracassar, King Kong, havia se tornado um gigantesco sucesso – e posteriormente um clássico absoluto do cinema –, mas o designer ainda estava preso a um contrato de ganhos pequenos com a RKO Pictures.


Ele queria um novo sucesso, mas feito fora do estúdio, para poder ganhar a soma que achava que era devida e até mesmo deslanchar como produtor, e começou a procurar avidamente algum filão ainda não explorado, algo capaz de atiçar a imaginação do público, como seu gorila gigante havia feito no ano anterior.


Foi quando acabou topando com a literatura de classe baixa, os pulp magazines, revistas baratas que eram vendida na casa dos milhões. Uma delas lhe chamou a atenção em particular, pelas histórias de clima lúgubre, luxurioso e violento e, principalmente, pela visão pessimista de mundo: Conan, do texano Robert E. Howard.


Desenhos de pré-produção descrevem lugares e personagens
Aspecto do Bairro dos Ladrões.

O contato com o recluso Howard não tardou, mesmo se o designer evitou tocar no imenso emaranhado legal que cercava seu contrato. E assim, quase que em silêncio, deram início ao roteiro e os primeiros estágios de pré-produção. Mal sabiam ambos que estavam a dias da morte de Howard e aquelas seriam suas últimas páginas dedicadas ao gigante cimério.


Após uma viagem para Califórnia para debater aspectos da última versão do roteiro, Howard, com a mãe em coma e em estado avançado de depressão, entraria em um carro, e sem nenhuma espécie de aviso – embora os sinais estivessem evidentes por toda parte – daria cabo da própria vida com um tiro. Antes de morrer, Howard entregou duas versões completas do roteiro. E uma terceira, inacabada.


O’Brien estava bastante descontente, o tom do filme era diferente do autor que conhecera nas páginas da revista Weird Tales. A trama tinha um tom desesperançado, confuso e arrasador, mas ainda assim havia algo de muito interessante nela, a ponto de O’Brien não saber exatamente que tipo de filme sairia dali. Nada semelhante havia sido feito antes.


O que Conan: Blood and Ice poderia ter sido, é muito difícil dizer. O que temos são os extensos manuscritos quase febris dispostos na gaveta e é bastante seguro afirmar que o filme que chegaria às telas provavelmente ainda passaria por inúmeras modificações, atenuando seu tom pessimista e desolador, digno de H.P. Lovecraft, amigo de Howard.


A Trama

O filme começa com um homem alto que cavalga pela floresta, em um cenário lúgubre digno dos filmes de horror da Universal, que faziam grande sucesso na época. A princípio, pelo porte do homem, o leitor eventual de Weird Tales logo o identificaria como Conan.


O homem é emboscado por diversas bestas semelhantes a lobisomens. Após um combate tenso, ele é acuado. Surge outro cavaleiro no horizonte, barbudo e demonstrando confusão mental. Ainda assim, ele intervém e salva o primeiro cavaleiro e então é revelada uma das primeiras surpresas do filme, o cavaleiro que antes achávamos que era o cimério, na verdade se chama Elgyn e o estranho barbudo que o salva é que é Conan.


Logo após, ambos acampam, Elgyn consegue penetrar nos sonhos de Conan, onde descobre que este estava se passando por um líder hyrkaniano morto por ele, na tentativa de unificar várias tribos e promover um levante contra o mago Galdec.


Galdec, por sua vez, após diversas tentativas de assassinato contra o cimério, (os lobisomens são apenas a mais recente delas), lançou um feitiço mais sutil: o estado mental do bárbaro se deteriora rapidamente. Não se lembra mais de quem é nem do seu objetivo inicial, perdido em seu novo papel – aliás, este é outro aspecto curioso do longa, o tema da desintegração mental e da perda gradual da identidade é quase onipresente, se repetindo das mais variadas formas ao longo de todo o roteiro.


Grato pela ajuda, Elgyn resolve ajudar o novo amigo e o leva para encontrar um boticário do Iranistão, capaz de curar o cimério.


Uma vez na cidade, tudo começa a dar errado. O boticário que iria ajudar Elgyn é na verdade Galdec, que através de pesadas drogas, vicia Elgyn, deixando-o fora de ação. Sem o amigo, a deterioração mental de Conan se acentua. Após uma série de eventos não muito claros, Conan vê Elgyn e retira a própria barba, como que confundindo a sua identidade com a dele. Nesse ponto, o filme parece sugerir que ter uma identidade, ainda que trocada, é melhor do que passar a vida sem nenhuma.



Confundido com Elgyn, Conan é por fim capturado pelo mago. A confusão do roteiro aumenta, chegando a beirar a incoerência. Nesse ponto do filme, finalmente é mostrada as motivações de Galdec: ele deve sCenários e eus poderes a dois dragões, Sligo e Slag, que devoram o tempo e viram que Conan seria o mortal que traria a morte para eles em um futuro próximo.


Por fim, Elgyn se recupera, convoca os hyrkanianos e invadem a fortaleza do mago, Conan se restabelece e Galdec foge. O filme caminha para seu ato final.


O grupo de heróis persegue o mago até a Costa Negra, em uma cidadela perdida que aparenta estar em ruínas. No centro dela, há uma imensa estátua de Conan ao lado de um leão. A explicação: eles estão na cidade de Amra-Koth, um império que Conan irá fundar dezenas de anos no futuro


, sob o nome de Amra (de novo a questão das identidades trocadas), mas que jaz agora no presente, como se estivesse abandonada há centenas de anos.


A cidadela é onde repousam Sligo e Slag, que devoraram todo o futuro até este ponto presente. Galdec vai até eles em busca de auxílio e acaba morto pelas entidades: em sua busca por ajuda, ele trouxe Conan até os dragões, ajudando assim que a visão que eles tiveram se tornasse realidade. Ao final, resta a Conan e seu bando, exauridos, enfrentar duas entidades sobre-humanas. E, para complicar a situação, existe um ovo na Cidadela e dele nasce mais um dragão.


Layouts de cartazes e uma estátua, já desgastada pelo tempo.

O final nunca foi divulgado por Piltdown. Ele apenas o classificou como extremamente perturbador, mesmo para os padrões bem mais liberais, provavelmente fruto do imenso tormento psicológico que Howard passava na época e um forte motivo para o filme nunca ter ido adiante.

Ou ao menos seria um forte motivo já que infelizmente pouca coisa escrita acima é verdade.


Verdades e Fraudes

Vamos aos fatos!

Sim, Willis O’Brien realmente foi o designer de produção de King Kong e Robert Howard realmente deu cabo da própria vida. Fora isso, o filme, o roteiro, a escrivaninha e tudo o mais, não passou de invenção do editor e roteirista Roy Thomas, ou, “Charles Piltdown” se você preferir (aliás, uma brincadeira que já entrega a fraude: Piltdown é o nome de um dos grandes embustes científicos do século 20, um crânio falso do suposto “elo perdido”).


A história surgiu em uma imensa matéria na revista Savage Sword of Conan 214, da Marvel (ou, no Brasil, em A Espada Selvagem de Conan 127, de 1995). E eu, ao ler tudo aquilo com pouco mais de 15 anos, acreditei piamente ser verdade. Esse tipo de erro era mais fácil nos tempos pré-Internet. Fiquei fascinado, tanto pelo filme que nunca existiu, como pela história por trás dele.


Nessa época, a revista do gigante cimério não vivia mais seus dias de glória absoluta (ouvi uma vez uma história segundo a qual, em seu auge, a revista só perdia para a Veja em vendas), ela começava o seu lento declínio em direção ao cancelamento, que ocorreria por fim, seis anos depois.


Na época da matéria, já fazia uns bons seis ou sete anos que as histórias haviam entrado em uma espécie de zona de conforto descerebrada, com resoluções previsíveis, sem a complexidade política, os personagens marcantes e o clima de horror existencial de seus anos iniciais. Muito disso parecia culpa dos dois filmes estrelados por Arnold Schwarzenegger, nos quais de um homem esperto, inteligente, levemente amoral e articulado, Conan virou um brucutu de sotaque austríaco que tem apenas 17 falas em todo o primeiro filme, sendo que uma delas é “chega de conversa”. Tirem daí suas próprias conclusões.Dói dizer, mas até Jason Momoa foi um Conan mais fiel ao espírito do original, não que isso venha ao caso aqui.


O fato é que os filmes cristalizaram no imaginário coletivo a figura do bárbaro que senta a porrada no monstro e come a mocinha no final, e tudo aquilo que tornava o personagem tão único, as contradições, as boas caracterizações, a complexidade social e política daquele mundo, começaram a ficar em segundo plano. O resultado, com o tempo, se refletiu nas vendas.

E Thomas, para dar uma animada nas coisas, resolveu inventar a farsa do filme.


Olhando em retrocesso, é bem fácil perceber os sinais evidentes. A iconografia derivada de Frank Frazetta (que só iria ilustrar as capas dos livros do cimério nos anos 1960); o estilo moderno e contemporâneo da abordagem, que nada tinha que remeta à estética da década de 30; os lapsos de tempo da história, entre outros. Mas, ainda assim, mais que uma mera farsa, Conan: Ice and Blood permanece na minha cabeça como uma das histórias mais curiosas e interessantes do personagem. Por mais descaracterizado que pareça, eu REALMENTE gostaria de assistir aquilo um dia.


Quem sabe, em algum universo paralelo…


(artigo original em https://opastelnerd.wordpress.com/2015/05/28/enquanto-isso-o-filme-de-conan-que-ninguem-viu/)

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