Os veneráveis e altivos pictos da Era Thuriana de Kull, da Valúsia.
Por Marco Antônio Correa Collares
Parte 3
Alguns contos do rei Kull foram publicados durante a vida de Robert Ervin Howard, a saber: “O Reino das Sombras”, “Os Espelhos de Tzun Thune” e “Os Reis da Noite”, nesse último caso, como um convidado especial na aventura do sei Picto da época romana de nossa história conhecida: Bran Mak Morn.
Outros tantos contos, no entanto, foram publicados somente após a morte do escritor texano, ocorrida no ano de 1936. Desde a primeira narrativa publicada de Kull, intitulada de “O Exílio da Atlântida”, o guerreiro bárbaro parecia predestinado a grandeza, melhor dizendo, estava predestinado a obtenção da coroa do imponente Império da Valúsia, um dos sete Impérios que existiam no continente Thuriano, antes do Cataclisma que deu fim a tal era ficcional-histórica, concebida pela mente arguta de Howard.
Kull não era valusiano propriamente dito, sendo criado entre os Atlantes da mítica ilha a oeste do continente, até seu exílio, ocorrido logo no seu primeiro conto. O texto inicial de Kull, aliás, muito breve e objetivo, traça o principal motivo de sua saída da ilha dos Atlantes, sendo ele capturado por piratas lemurianos, depois vendido e escravizado na Valúsia, posteriormente transformado em gladiador, depois se tornando livre como soldado até se tornar, por seus próprios méritos no uso da espada, um imponente e valoroso comandante, até que, por fim, se torna rei da Valúsia após matar o rei Borna (algo que no conto é apenas citado e não narrado em detalhes).
No segundo conto, “O Reino das Sombras” (o primeiro publicado sobre Kull, na famosa Weird Tales, em 1929), Kull já é um rei experiente. Logo de saída, ele encontra-se com os velhos inimigos dos Atlantes, os Pictos e logo ele inicia uma amizade com o Picto Brule, conhecido como “Assassino da Lança”, um personagem deveras importante nos ciclos do rei e que se tornará uma espécie de parceiro de aventuras.
De certa forma, quase todos os contos de Kull a partir de então, traçam alguns aspectos e caracterizações do povo Picto da época Thuriana, sendo então relevante, para nossos propósitos aqui, entender como Howard constrói tal raça e cultura nessa época de sua cronologia ficcional-histórica.
Em uma primeira menção aos Pictos, Kull recebe um emissário de um embaixador do reino das ilhas desse povo, sendo Brule o tal emissário enviado. É nítido de saída, como Kull, mesmo não sendo Atlante de nascimento, mas um selvagem que vivia na ilha e que foi criado entre os Atlantes, mostra total antipatia pelo Picto, sendo recíproca tal antipatia da parte de Brule. Howard demonstra aqui o ódio tribal e bárbaro entre Pictos e Atlantes, algo que irá dimensionar as disputas nos contos do próprio Conan, durante a Era Hiboriana. A caraterização de Brule é assim evidenciada:
“Trava-se de um guerreiro esguio, mas robusto como a média de seu povo. Seu corpo era rígido e sua pele era morena, tal como todos os membros de sua raça. Entre tais características poderosas, os olhos insondáveis observavam a Kull, fixamente, sem temor”.
Bem, de saída, Robert Howard apresenta os Pictos de época Thuriana de forma bastante respeitosa, expressando a imponência de Brule como um típico integrante de sua raça bárbara e selvagem (aqui os termos se vinculam). Logo adiante, ambos os personagens, Kull e Brule iniciam conversas no conto, mirando-se fixamente em meio a uma certa tensão de memórias raciais, levando novamente a uma caracterização da parte de Howard. Vejamos.
“Confrontaram seus olhares fixamente e, silenciosamente, um ódio tribal quase triunfava sobre a máscara da etiqueta. Suas bocas falavam com a linguagem civilizada, pronunciando as sossegadas frases da corte; as palavras de uma raça (dos valusianos, no caso) que havia alcançado um alto nível de civilização; mas nos olhares de ambos (Kull e Brule) brilhavam as tradições primitivas dos selvagens de Alba dos Tempos. Talvez Kull fosse ali o rei da Valusia e Brule o emissário do embaixador picto Ka-nu, mas na sala do trono eles eram dois selvagens que se olhavam cautelosamente, à espreita, ouvindo os sussurros dos fantasmas de terríveis guerras (entre atlantes e pictos) e rancores tão velhos como antigo é o mundo”.
Bem, como bem sabemos, o conto é sobre o desvelo de uma conspiração perpetrada pelos Homens-Serpente contra Kull e de como ele é avisado pelos Pictos e ajudado por eles no enfrentamento dessa ameaça, ajudado tanto pelo embaixador Ka-nu, que o avisa do perigo, como pelo guerreiro Brule, que se torna aliado de armas do rei bárbaro, tanto no conto como a partir da supracitada conspiração.
Mais adiante no conto, em meio a conversa entre o embaixador Picto, Ka-nu e Kull, Howard nos concebe mais pistas sobre como ele pensava os Pictos da Era Thuriana, desvelando uma selvageria inata, mas também uma sabedoria bárbara e um alto grau de cultura, estando os Pictos em uma aliança diplomática com a Valúsia de Kull.
No encontro entre Ka-nu, embaixador Picto das ilhas ocidentais e Kull, rei da Valúsia, fica evidente o quanto ambos apenas vestem um verniz de civilização, possuindo aspectos das respectivas ancestralidades de suas raças (em Kull, da cultura Atlante, visto que ele não é da raça propriamente dita). Mesmo assim, em meio a ambivalência existente entre civilização e barbárie em tal caracterização, ambos se mostram representantes de povos altivos e imponentes, com certa sofisticação em meio as suas naturezas tribais e selvagens. Vejamos:
“A lua, todavia, não brilhava no céu e os jardins se iluminavam com as ardentes tochas e lanternas alocadas em jarras de prata, quando Kull se sentou no trono colocado diante da mesma de Ka-nu, embaixador das ilhas ocidentais pictas. A sua direita se sentava o velho picto, que, a primeira instância, não parecia ser um mensageiro daquela raça orgulhosa. Ka-nu era muito ancião, mas muito versado em política, pois praticava aquele jogo fazia muito tempo. Não miravam em seus olhos sobre Kull nenhum ódio primitivo (tal como ocorreu entre Brule e Kull em um primeiro encontro), senão uma certa estima. Ao frequentar assiduamente as cortes dos homens civilizados, havia varrido Ka-nu, de sua mente, os prejuízos de seu povo”.
Aqui temos muitas informações para tirar do excerto de Howard. Em primeiro lugar, os Pictos das ilhas ocidentais enviam embaixadores para tratativas diplomáticas, comerciais e políticas com reinos e império do Continente. Trata-se de um grupo com algum tipo de Estado organizado e que se relaciona com outros reinos e Estados igualmente organizados. Em segundo lugar, o embaixador Picto, Ka-nu, possui elevado grau de comportamentos civilizados, muito pela sua atuação na esfera política em cortes de reinos civilizados, demonstrando, por um lado, que homens Pictos poderiam livremente usar expedientes civilizados em suas condutas.
Ao mesmo tempo, Howard afirma no texto que aquele povo, apesar de usar expedientes políticos civilizados possuía, diferentemente do que apresenta Ka-nu diante de Kull, uma selvageria tradicional, significando aqui, que os Pictos da era Thuriana seriam essa mescla entre barbárie inata e civilização circunstancial, acatando o jogo dos reinos civilizados para benefício de seu povo e grupo. Em outras palavras, uma raça com alto grau de sabedoria para lidar com o mundo civilizado a sua volta, jamais se isolando ou lidando com outros povos apenas por expedientes belicosos, como veremos depois acontecer com mais força, pelo menos na Era Hiboriana de Conan.
Em vários contos de Kull, quando Howard menciona o personagem Brule e seus guerreiros Pictos, está bem demarcada a selvageria e a barbárie do povo em questão (o mais correto aqui seria barbárie, apesar de Howard usar o termo selvageria em vários casos), possuindo Brule e seus irmãos raciais, um código de honra específico, uma brutalidade inata, uma altivez e honestidade no trato e nas palavras, não muito diferente do que o próprio Kull, que igualmente possui sua natureza bárbara cultural Atlante (e até própria e mais retilínea do que de seus irmãos culturais, a exceção, talvez, de seu antigo amigo e companheiro de armas e caça, Am-ra).
No conto conhecido como “Abismo Negro”, Kull se vê envolvido novamente em uma conspiração, agora na cidade valusiana de Kamula. Ali, dois companheiros de Brule são sumariamente atacados e Kull e seu aliado precisam desvendar quem estaria por trás desses ataques. Logo de saída, quando o Assassino da Lança invade o quarto do rei para exigir justiça contra os assassinos de seus soldados Pictos, Howard novamente caracteriza tal raça e como o próprio Kull a considera. Segue abaixo essa nova caraterização:
Kull voltou e emitir um suspiro. Ele conhecia bem os selvagens pictos que serviam a Valúsia como aliados, soldados e mercenários; compreendia a obscura fúria que dormia neles, como dorme em todos aqueles que são verdadeiros bárbaros, como de fato dormia em seu próprio coração, pois, apesar de agora ser rei da Valúsia, Kull havia nascido como um selvagem desnudo na primitiva Atlântida, e mesmo ali no continente, no fundo de sua alma aninhava-se a essência do bárbaro vermelho de sangue que era, apesar da superfície da esplendorosa cultura valusiana com que havia se revestido desde então.
Pois bem. O excerto traça um paralelo entre Kull, de uma raça primitiva e bárbara que vivia na ilha da Atlântida, mais os Pictos de Brule da época Thuriana. Não é preciso mais nenhum texto para evidenciar que, em ambos os povos, a premissa da barbárie seria a mesma. Um esgar de fúria contida que as vezes aparecia em meio as batalhas de vida e morte. Alguns vernizes de civilização quando necessários, não no sentido jamais da corrupção civilizada (um traço comum em Howard), mas no trato necessário com outros povos, homens e culturas.
Os Pictos da Era Thuriana, pelo menos em termos de comportamento, não são muito diferentes dos Atlantes, apesar de serem inimigos quase que raciais. São sábios, firmes, imponentes, altivos, bons de briga, honrados, retilíneos, rústicos, podendo se relacionar com povos civilizados de igual para igual e até mesmo salvar uma Valúsia de uma conspiração contra seu rei.
Ao mesmo tempo, um Picto pode ser também como Ka-nu: esperto, político, sábio, sagaz, mantendo sua honra e palavra, ainda que pelo interesse pessoal ou de sua própria raça.
O Cataclisma virá e então, como bem diz Howard em seu texto, Era Hiboriana, tanto os Pictos como os Atlantes regredirão a estágios de pura selvageria, mantendo seus ódios comuns em meio aos conflitos dos ermos do ocidente continental. Quando surgem, mais tarde os cimérios, os aesires e os vanires, descendentes dos Atlantes que fizeram uma colônia no continente, bem, esses povos continuam com seus conflitos contra os Pictos, e estes, por sua vez, regridem ao estágio da pedra e do sílex. Mas isso, fica para o próximo texto.
Acompanhe as primeiras duas partes aqui:
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